Autobiografia mesclada com fatos históricos é relato emocionante e divertido

Em “Gastura”, autor Fernando Machado mergulha em suas memórias e em episódios marcantes ocorridos no Brasil e no mundo para dar sentido à sua existência e aplacar mal-estar emocional

Por: Redação
06/03/2025 às 14h54
Autobiografia mesclada com fatos históricos é relato emocionante e divertido

Uma autobiografia mesclada com um almanaque histórico, essa sentença define bem “Gastura”, o livro de estreia do escritor Fernando Machado, publicado pela Editora Labrador. Em mais de 300 páginas, o autor, que tem 81 anos de idade, mergulha em sua memória (prodigiosa), extraindo dela importantes passagens de sua trajetória. No caminho, pinça fatos históricos (72 no total), que, de alguma forma, marcaram sua existência. O resultado é um livro emocionante e divertido, um tanto melancólico, mas repleto de esperança e otimismo, que envolve o leitor do início ao fim.

Engenheiro civil aposentado e ex-mecenas cultural, o paulistano Fernando Machado passou boa parte de sua vida adulta de bar em bar, tendo como grande prazer a degustação alcoólica. Outra parte de sua trajetória buscou combater esse prazer transformado em vício. Para tanto, ingressou no grupo Alcoólicos Anônimos (AA) e com ajuda da irmandade obteve êxito na empreitada. Contudo, sempre sentiu que lhe faltava algo para se tornar plenamente satisfeito em sua sobriedade. Isso porque um dos passos sugeridos pela comunidade voluntária é fazer “um inventário moral minucioso e destemido de si mesmo”, algo que Fernando tentou em vão por muitos anos.

Concomitantemente, Fernando sofria daquilo que ele convencionou chamar “gastura”: um certo mal-estar psicológico e emocional, caracterizado por angústia e medo, que não raramente se desdobravam em um padecimento de ordem física. Foi procurando superá-la, que o escritor iniciou tratamento psicológico. Em uma das consultas, ocorreu-lhe uma ideia com potencial de lhe salvar. “Se eu escrevesse a história de minha vida desde quando a minha memória alcançasse, poderia terminar de abrir ou fechar portas imaginárias que estivesse apenas entreabertas”. Assim, ao mesmo tempo que deu o pontapé inicial para alcançar a cura, completou o passo que faltava para alcançar a sobriedade plena (o inventário moral). Consequentemente, escreveu o livro, que leva o nome de seu mal-estar psicológico e físico.

Em “Gastura”, a narrativa se desdobra em dois tempos e três perspectivas: no tempo pretérito, o autor aborda os principais acontecimentos de sua vida e os intercala com fatos históricos que marcaram o Brasil e o mundo, em um intervalo de 50 anos, que vai desde a chegada da televisão no Brasil, em 1950, até o Bug do Milênio, no ano 2000. Além disso, retrata o momento presente, para demonstrar as dificuldades que enfrentou ao escrever seu “inventário moral minucioso e destemido” e demarcar o progresso no tratamento de suas angústias e medos.

Fernando Machado - escritor

No que tange à sua biografia, o autor tenta não deixar nada de fora. Assim, trata inicialmente daqueles que o fizeram existir: seu pai e sua mãe, mostrando-os como pessoas bem diferentes. O pai, mais assentado e menos cheio de ambição; a mãe, inquieta e arrojada. Eram distintos também a família de ambos: enquanto pelo lado paterno, tudo se resolvia mais parcimoniosamente, do lado da mãe, o litígio era a solução encontrada. Posteriormente, aborda sua infância, marcada por variadas brincadeiras de rua, na Vila Mariana, que, aliás, é parte importante da obra, já que boa parte da vida de Fernando foi passada no bairro.

O autor descreve, nunca deixando de lado à franqueza, as agruras do período escolar, resultado de seu fraco pendor para os estudos; o relacionamento tempestuoso com os irmãos; o namoro com uma estudante de psicologia da Universidade de São Paulo (USP) - enquanto ele cursava engenharia civil no Mackenzie - que não resistiu a ideologias distintas em fase política do país tão conflituosa; e sua primeira incursão no mundo do empreendedorismo, com a abertura da “Toca do Popeye”, um bar localizado na região central da capital paulista onde estudantes se reuniam para beber e discutir assuntos políticos.

Também são episódios memoráveis de sua autobiografia, o primeiro casamento marcado pelo companheirismo e respeito mútuo, mas que prescindia de paixão; a morte de dois rebentos logo depois do parto; o nascimento e a vida de outros três filhos; a carreira de sucesso, especializada na construção de pequenos túneis; a fase de mecenas; a separação da primeira mulher; o encontro com um novo amor; a mudança para Ribeirão de Ilha, em Florianópolis; e o interesse tardio pela religião de matriz africana, Batuque, mais comum no Rio Grande do Sul. Como o objetivo de Fernando era fazer um inventário moral de sua vida, a luta contra o alcoolismo e principalmente o ingresso no grupo AA não poderiam ficar de fora do seu livro de memórias. A abordagem destes dois episódios rende passagens tocantes.

No que diz respeito aos fatos históricos destacados na obra, não é possível deixar de citar as diversas copas do mundo mencionadas ao longo do livro. Por aparecerem de forma recorrente, deixam claro que o esporte é (ou era) uma paixão para o autor. A chegada da televisão ao Brasil e os acontecimentos que Fernando acompanhou grudado na tela, como o primeiro homem a pisar na Lua, os festivais de música popular brasileira, os programas Fino da Bossa e Jovem Guarda e o acidente fatal de Ayrton Senna, também merecem ser mencionados.

A maioria dos principais acontecimentos políticos e culturais do Brasil e do mundo, desde 1950 até o ano 2000, estão presentes em “Gastura”. No livro, o autor aborda, entre outros fatos, o Golpe Militar no Brasil, os assassinatos de Martin Luther King e J.F. Kennedy e de Che Guevara, a Guerra Fria, o festival de rock Woodstock, o fim da Guerra do Vietnã, a separação dos Beatles, as guerras árabes-israelenses, o período de democratização do país e o Bug do Milênio. Compõem o elenco de fatos marcantes ressaltados no livro também os grandes crimes e tragédias que assombram o país e mundo, tais como o assassinato da socialite Angela Diniz, os crimes cometidos pela “Familia Manson” e o suicídio coletivo em Guiana.

Alguns fatos relatados na obra ganham sabor especial, porque, de alguma forma, se misturam com a própria vida do autor. Assim pode ser compreendido o destaque que Fernando dá, no livro, a acidentes aéreos, como o de Tenerife e o que matou Leila Diniz, haja visto que entre os sintomas de sua gastura, há o pavor de voar. As menções à volta do Peronismo, à Evita Perón, e às “Madres da Plaza de Mayo” ganham outro sentido, pois sabemos de antemão das viagens da mãe do autor à Argentina, para comprar itens de luxo a serem revendidos no Brasil. Já a “Batalha da rua Maria Antonia”, conflito entre estudantes da USP e do Mackenzie, que culminou na morte de uma pessoa, um dos episódios históricos do livro, teve Fernando como testemunha ocular, sendo um dos motivos que o levou a se separar de sua primeira paixão.

“Gastura” atende a interesses diversos. Para os adictos, pode ser o impulso que falta para adentrar ao mundo da reabilitação, haja visto a sinceridade com que o autor descreve o seu alcoolismo e os passos dados para combatê-lo. Para leitores nostálgicos, interessados em mergulhar de cabeça no passado e extrair de lá a mistura de sentimento que dá sentido à existência, a descrição minuciosa de sua vida por parte do autor não será um desapontamento. Para quem deseja conhecer melhor a história do Brasil e do mundo, o livro é de grande valia.

Sobre o autor

Fernando Machado formou-se em engenharia civil na Universidade Mackenzie, em 1968. Exerceu sua profissão até o começo do novo milênio quando passou a se dedicar a um espaço multicultural em São Paulo (SP). Alguns anos depois, aposentou-se e mudou-se para Florianópolis (SC).

Em 2018, um pouco antes da pandemia, após passar por uma terapia de regressão que fez emergir diversas lembranças há muito escondidas, resolveu escrever seu primeiro livro, a autobiografia e almanaque histórico brasieiro, “Gastura”. A experiência com a escrita foi tão gratificante que Machado abraçou de vez o novo ofício, enveredando-se pelo mundo dos romances ficcionais. É dessa nova fase, Phênix, um livro sobre esquecimento, memória, acerto de contas com o passado e amor. Nesse ano, lançou “Spoiler”, que navega por temas polêmicos como gênero, raça e preconceito.

Todos os livros de Machado foram publicados pela Editora Labrador.

Ficha técnica:

Editora: ‎ Editora Labrador; 2ª edição (26 junho 2023)

Idioma: ‎ Português

Capa comum: ‎ 304 páginas

ISBN-10: ‎ 6556253170

ISBN-13: ‎ 978-6556253176

Idade de leitura: ‎ 14 anos e acima

Dimensões: ‎ 16 x 12 x 23 cm

Páginas: 304

Valor: R$ 69,90

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